O dia em que Te encontrei
e toma a minha mão de musgo devagar
para que o meu entendimento seja
o da árvore
justo e leve
“O tamanho do mundo era excessivo e muito para além das árvores e daquilo que tudo podia conter sem nunca ficar pleno. Tu trazias-me pela mão esse verão de infância distante e foi o tamanho do mundo todo que veio pousar sossegado nos meus olhos. E as árvores tinham folhas de silêncio. E os pássaros voavam mornos e azuis. E a mãe cantava à janela enquanto os rios de luz desciam pelas ruas dessa tarde.
Eu tinha três anos, lembras? Mas naquele dia abriu-se uma pátria na minha mão direita. E a terra, as ervas, as vozes, as sombras dos objectos e o movimento das coisas suspenderam a sua notícia enquanto eu pousava no ar e no rumor que move o mundo. Era como uma música de silêncio e Tu estavas. E ficaste sempre.
Eu tinha este segredo e via que ele crescia como a Grande Tília que há no nosso país. Sim, é verdade, não existe um país como o nosso, e a nossa casa todos os dias se move sobre a água. E foi aí que vi caminhar-Te enquanto anoitecia na areia e nos mares. “Vem”, disseste, e as portas abriram-se como as asas dos estorninhos sobre os telhados da igreja. E eu fui. Foi quando encontrei uma grande ferida no mundo e compreendi que os dias trazem dias, mas nunca o mesmo dia. E que tudo caminha para dentro e para cima sem que algo alguma vez se repita. E voltaste a dizer-me “Vem”, e, como estava junto ao rio, reparei que o meu corpo era só uma forma de acontecer. Movi os pés e aconteceu mover-se o mundo também no meu coração. Então disse-Te “deixa-te estar aqui comigo… É que vejo uma ferida no mundo…” E sorrias quando respondeste “Isso é porque ainda vês dois mundos.” E então fez-se fundo e longo à minha volta e percebi que há uma luz que move o mundo.
Nós somos os teus filhos. Por Ti temos esperado desde sempre. Em tua busca temos percorrido o caminho das cabras, levantado pedras. Seguimos-Te nos dias frios e viramos-Te as costas nos dias mornos. Por Ti se lamentou Simeão enquanto envelhecia na sua longa escada.
Construí, pois, a minha própria escada. Não uma escada sólida, de pedra e cimento ou de madeira dura e com pregos fortes e capaz de suportar as maiores intempéries. Não, a minha escada fi-la de papel azul de água como os girassóis. Foi assim que a quis. Uma escada frágil e incapaz de resistir ao vento: para que quereria uma escada que resistisse à minha própria vida? Assim, todas as vezes que preciso de subir à minha alma e ver o mundo, basta-me erguer os olhos no meu coração. E uso essa escada para quando chegar a Ti: foi quando tinha três anos que compreendi haver no mundo um silêncio em movimento.
E quando acontecem coisas assim não mais são precisas certezas. Foi por isso que construí as minhas escadas em barcos de silêncio. Repara: no sítio onde estou tenho uma porta que dá para o mundo. E foram muitas as vezes que tentaram levar-me por outros barcos, mostrar-me outros locais onde acontece que Tu não estás. Porque a pedra contém o menor e o maior, mas lugar algum pode encerrar o silêncio da luz.
Quando era muito pequeno e os olhos me chegavam para ir a todo o lado, corria atrás da luz e do silêncio das árvores e ansiava encontrar uma casa onde pudesse encontrar todos os Teus indícios. Quando era pequeno desconhecia a falta que fazem certas coisas que perdi e o que é estar à espera de alguém que não volta mais.
Agora, que cresci para além da idade em que as coisas começam a cair, encontro-Te em todo o lado e deixei de Te fazer perguntas.”
Carlos Lopes Pires in Notícias de Leiria, 8 de Fevereiro de 2002
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